A rua é um palco: O carnaval pelas lentes do Design de Serviço
Uma das coisas de que mais gosto no Rio de Janeiro é o carnaval de rua. Para muita gente, ele dura apenas alguns dias de verão, mas, para mim, ele significa estrutura, pertencimento e um espaço para garantir os meus rolés o ano todo. Quando mudei para o Rio com objetivo de apostar na carreira de Designer de Serviço, logo estava inscrita em um bloquinho, segurando um instrumento de percussão que eu nunca tinha tocado, pronta para formar a minha comunidade pessoal.
Era também a hora de conhecer a anatomia do carnaval. Se a rua é o palco de um espetáculo do qual participei tantas vezes como foliã, chegava o momento de enxergar o que acontece por trás das cortinas. Essa é, aliás, uma parte importante do trabalho do designer: enxergar, interpretar e estruturar o invisível, sistematizando conceitual e visualmente o que está nos bastidores de um serviço. Essa compreensão é o que nos permite, em seguida, desenhar, testar e implementar um serviço ideal.
Um universo de purpurina diverso com suas similaridades
A partir dos meus conhecimentos de Design, sou capaz de fazer um exercício de análise baseado nessa vivência, que categoriza, relaciona e encontra padrões para definir os tipos de bloquinhos de rua cariocas e entender o carnaval pelas lentes do design de serviço.
Quando observamos o carnaval de rua, logo percebemos que existem muitos tipos diferentes de bloquinhos: dos recém criados aos mais tradicionais, dos pequenos aos que atraem multidões, dos que se apresentam parados aos que andam (ou correm) em cortejo, dos que ficam com o pé no chão aos que contam com trios elétricos – todos dedicados a diferentes estilos, conceitos e ritmos.
Para quem observa o fenômeno a partir dos bastidores, talvez mais instigante que essas características iniciais seja analisar os desejos e motivações de quem integra um bloquinho. Esse é um recorte poderoso para o designer entender esse universo e toda a diversidade que nele se apresenta.
Com esse olhar, chegamos a uma proposta de tipologia dos bloquinhos, ou seja, uma classificação que serve para nos ajudar a entender como as pessoas se diferenciam em suas necessidades, expectativas e comportamentos.
Tipologia dos bloquinhos
As tipologias podem ser comparadas visualmente de acordo com parâmetros relevantes na formação dos perfis, com a ajuda de uma matriz analítica.
Matriz comparativa quanto à estrutura dos blocos e à experiência dos músicos integrantes
O movimento é sexy
Conhecendo os diferentes tipos de bloquinhos, podemos observar como se dão as relações entre eles, algo que o design adora assinalar. Músicos de oficinas costumam migrar para blocos avançados de um ano para o outro. Já os de blocos avançados podem voltar a oficinas para aprender um novo instrumento ou mesmo para se tornar um instrutor. Também podem buscar novos blocos avançados simultâneos para tocar. E todos os músicos se reúnem nos blocos livres para aprender, compartilhar o que sabem e ter a chance de desfilar (ou de desfilar mais um pouquinho).
Esquema que demonstra a relação entre os diferentes tipos de bloquinhos
Evolução da bateria: a jornada do carnaval de rua
Também podemos traçar uma jornada do carnaval de rua, ou seja, visualizar os eventos que ocorrem ao longo do tempo e que, combinados, proporcionam uma experiência aos participantes. Se de um lado temos os músicos e profissionais envolvidos com a organização de um bloquinho, do outro temos os foliões que se divertem com as apresentações.
É interessante perceber que uma saída do bloco na rua, na qual os foliões vão pular por cerca de duas a três horas, pode significar de quatro a nove meses de preparação, trabalho e aprendizado nos bastidores em oficinas e em blocos avançados. Ainda assim, é possível desenhar uma mesma estrutura para a jornada do carnaval para foliões e músicos. Estas jornadas se relacionam e se diferenciam pelas ações que ocorrem a cada momento da experiência de cada um.
Assim, podemos traçar quatro momentos-chave dessa jornada, que serão importantes para descrever as etapas da experiência de músicos e foliões: a identificação do bloco, a preparação, o desfile e o encerramento.
Jornada do carnaval pelas lentes do Design de Serviço
Nessa visão, dentro dos momentos-chave teremos uma sequência própria de ações realizadas por cada um dos atores que estamos observando. Essas ações refletem vivências e papéis diferentes, que, por sua vez, podem estar associadas a uma diversidade de sentimentos, dores, necessidades, barreiras, pontos de contato etc. Todos esses elementos podem ser cuidadosamente percebidos e planejados pelo Designer de Serviço.
Jornada detalhada do carnaval de rua
Falando novamente em relações, enquanto o carnaval acontece na rua, as ações dos músicos nos bastidores podem impactar e até modelar a experiência dos foliões.Desenhar suas jornadas nos permite analisar o que está funcionando bem e o que poderia ser aprimorado em um serviço. A partir dessa avaliação, por exemplo, é possível mapear as necessidades das pessoas envolvidas e identificar barreiras e incentivos que elas encontram a cada momento; analisar se há oportunidade de incluir algo na jornada para atender a demandas não contempladas ou verificar se é necessária a retirada de alguma etapa para tornar a experiência mais fluida. Isso nos ajuda a planejar um serviço ideal.
Um sistema chamado carnaval
Além dos blocos em si, o ecossistema do carnaval de rua é formado por muitos outros atores e elementos que também impactam tanto a experiência do folião e dos músicos quanto a de uma cadeia maior, no próprio entorno, no bairro, na cidade e nas relações de comunidade. Se a rua é um palco, ela também é um local de conflitos. Junto da folia, coexistem temas diversos como questões sociais, debates sobre o uso do espaço urbano, questões de interesse público e privado e intenções de diferentes atores.
O espaço que recebe músicos e foliões ainda contempla o que chamamos de stakeholders, ou seja, partes interessadas que são direta ou indiretamente impactadas, como vendedores ambulantes, fotógrafos, comunicadores, agentes de segurança pública, de trânsito, de limpeza urbana, fiscais da prefeitura, moradores do bairro, moradores de rua e toda uma rede de coletivos musicais que se articula, se une, se separa e se mistura, fortalecendo a cultura popular.
Ecologia do carnaval pelas lentes do design de serviço
Olhar para uma instituição complexa, como o carnaval de rua, entender seu comportamento sistêmico, identificar as pessoas envolvidas e seus papéis, descobrir as dores e necessidades desses atores, como se relacionam e, a partir daí, identificar problemas e encontrar oportunidades para tornar essa instituição e seus processos mais eficientes e com o impacto desejado é o que fazemos diariamente como designers de serviço.
Este é um exercício livre com um olhar para o carnaval de rua para mostrar um pouquinho dessa dimensão. Esse olhar pode ser aplicado a produtos, a organizações, a eventos, a causas, e até à rotina da vida cotidiana, com a profundidade e o direcionamento que cada situação exige.Ao invés de acessar vivências pessoais, por exemplo, em projetos aplicamos pesquisa junto a nossos públicos de interesse para acessar os bastidores dos serviços e entender os diferentes comportamentos de quem os oferece e de quem os utiliza. De todo modo, para mim, o Design estrutura uma forma de pensar que permeia todos os contextos e adiciona uma camada extra de estratégia às nossas decisões.
Letícia Cecagno é Service Designer na Livework, foliã e percussionista do carnaval de rua do Rio de Janeiro, tocando em diversos bloquinhos. Adora pensar em inovação, em cultura e no uso inteligente do espaço público.
*Imagem de capa: Pexels – @luhras